24 de outubro de 2010

FILOSOFIA E ARTE: DIÁLOGOS ATRAVESSADOS (UM RECORTE)

por Bruna Suelen
Bacharel e Licenciada em Filosofia/UFPA
blovynha@gmail.com

PALAVRAS-CHAVE: Diálogo, Conceito, Acontecimento.

INTRODUÇÃO:
Este Artigo tem como objetivo um diálogo entre a Filosofia e a Arte, partindo das noções dos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, onde a Filosofia é a criação de conceitos e a Arte criação de perceptos e afectos (blocos de sensações). Cada qual em seu plano, a Filosofia no plano de imanência e a Arte no plano de composição, fazem um recorte no que eles chamam de “caos” da vida. Isto é, a Filosofia cria conceitos, traça planos e diz o acontecimento; a Arte por sua vez, cria perceptos e afectos traça planos e também diz o acontecimento. As duas em uma relação de puro devir. Aqui mostraremos a trajetória deste pensamento como acontecimento, relatando ações de um coletivo artístico, a Rede [Aparelho]-: que experiencia vivências nas ruas da cidade de Belém. Uma arte que intervém diretamente, construindo e desconstruindo situações, fazendo emergir pensamentos. Aqui, Arte é tratada como Política não como uma Estética Transcendental, é vista como puro acontecimento, que transforma e distribui informação. Para mostrar esse tratamento, é feito uma apropriação de um conceito dos filósofos, que pode ser chamado de Platôs (por ser passível de conexões infinitas e não ser hierarquizável), a Máquina de Guerra. Através dele criaremos imagens para o pensamento, mostrando o acontecimento, isto é, as ações deste coletivo, fazendo assim um diálogo com o filosófico; que jamais estará fechado, portanto, sempre pronto para novas apropriações.

REDE [APARELHO]-:, O ACONTECIMENTO E O PENSAMENTO

A MÁQUINA DE GUERRA: O [APARELHO]-: EM COMBATE:
A Máquina de guerra está fora. É uma fuga, uma linha de fuga. Enquanto Platô é possível conectar-se com qualquer outra forma de fuga, funciona em redes, anel quebrado, que se monta desmonta e remonta itinerantemente. Não precisa de uma estrutura fixa, estar no mesmo lugar, só precisa de vários núcleos e todos possíveis de combinação, Rizoma. A Máquina de Guerra é rizomática, pois vem de qualquer origem e vai para qualquer origem.
Com a capacidade de conectar-se, percebe que tem força suficiente para sobreviver de forma autônoma. Basta que não se demore em um lugar, não se torne fixa, e continue se conectando, criando novos corpos, novas imagens, novas linhas.

- INTERVENÇÃO URBANA E OS SALÕES DE ARTE:
Batalha, fogo, disparo... A cidade como campo de guerra. Ações urbanas cotidianas podem ser atravessadas por interrupções, intermezzos. Mecanismos que se efetuam por trocas, compartilhamento de idéias entre corpos-mentes. As intervenções urbanas são essas máquinas que atravessam os sistemas de vida e de arte na cidade e alteram assim sua visualidade: Performances ao meio-dia no centro da cidade, pixos e grafismos em todos os muros que passam por nós, bikes-sons “publicitando” em pedaladas que “torram” sob o sol, cineclubes em plena zona meretrícia, aonde o cinema só chegava televisionado.

Arte contemporânea de rua, intervenções na rua, para todos, intervenção urbana. Potência do que vem de fora, externo, alheio, uma Máquina de Guerrra. Nos Salões de arte contemporânea, ocorre uma mumificação da arte dentro de uma forma, uma validação que controla e domestica a potência criativa que as intervenções produzem na cidade, seria o dentro. Ao sair da rua para um salão, portanto, a Intervenção submeter-se-ia a uma legislação que define suas regras de funcionamento. No caso específico das intervenções, tal submissão criaria um problema de ordem estética e estratégica evidente: a perda de potência das intervenções . Estas passam a estar dentro do sistema de arte vigente ao qual o Estado tem domínio. E ao fazer parte de um mecanismo de controle, das normas estéticas, ao compactuar com uma lógica cultural e artística interna ao Estado, passam a compor uma arte institucionalizada por preceitos e diretrizes específicos, ajuizamento e invólucro de Salões.

As intervenções Urbanas laçam situações diferenciadas sobre a cidade, muito além de qualquer julgamento anterior, controle ou legislação do sistema de Arte. Intervenções artísticas nas ruas transformam a cidade em fato estético. Deleuze e Guattari nos ajudam a entender exterioridade e interioridade dentro de um processo combativo, como este:

"Não basta afirmar que a máquina é exterior ao aparelho, é preciso chegar a pensar a máquina de guerra como sendo ela mesma uma pura forma de exterioridade, ao passo que o aparelho de Estado constitui a forma de interioridade que tomamos habitualmente por modelo, ou segundo a qual temos o hábito de pensar.”

Há sempre processos de capturas rondando, perseguindo a arte de forma geral. Por isso, encarar a arte de forma autônoma e viva apenas dentro de padrões estéticos acadêmicos e de Salões, é travar, limitar, condicionar a arte internamente em um sistema de vigilância, de codificação.

Deleuze e Guattari nos dizem que o que é interno ao Estado, já foi capturado, faz parte de sua lógica interna, e será preservado e vigiado; o que é externo a ele, está em fuga, ou melhor, em linhas fronteiriças, traindo, driblando, escapando às internalizações. Este é um caso de nomadismo, uma ocupação estratégica, que permanece em determinado território enquanto este lhe for útil. Diferente de uma ocupação como foi a da Polis, as cidades-Estado gregas cuja ocupação de todos os mecanismos de controle possíveis é latente: a educação, política-economia, exército, arte, que foram sendo treinados, apenas, para cada vez mais aplicar suas capturas, suas codificações, sua burocracia. O ocupação nômade é “um povo ambulante de revezadores, em lugar de uma cidade modelo” . Igualmente são as ações artísticas nas ruas, pois podem ocupar vários lugares ao mesmo tempo, e permanecer ali o mínimo possível. Tornando quase imperceptível aos olhos de quem passa desatento, ou extremamente atraente, instigante, absurdo. Diferente de arte dentro de Salões, que mesmo que estejam fora já estão rotuladas, e a formação de publico (lê-se consumidores) foi pré-concebida. Arte capturada.

A guerra só começa quando a Máquina de Guerra sente que a ameaça da captura está nas ondas do ar. Processos de captura acontecem, porque o Estado nunca irá admitir que existam poderes paralelos que escapem aos seus domínios de vigília, e tentará sempre tomá-los para si. Em todas as formas que o homem encontra de se expressar, e de mostrar-se, o Aparelho de Estado cria uma identificação, pois necessita que este homem tenha sua subjetividade contida no próprio aparelho de Estado, senão não há como entendê-lo, visualizá-lo, e se não está posicionado em algum padrão, não existe. O homem e suas ações devem fazer parte de um todo, compor uma maioria, ao menos buscar alcançar uma; ou vira código (maioria) ou não é ninguém. O que define a maioria é um modelo aceito pelo Estado. Por exemplo, o artista mediano da cidade, que expõe em salões e que faz parte de um ciclo em que suas obras serão consumidas apenas por quem frequentar estes espaços. Uma minoria não tem um modelo, é um devir, um processo.

O acontecimento de ações combativas, nas ruas da cidade, por exemplo, escapa a identificações, e, portanto é livre como o vôo um pássaro, não necessita de parâmetros para que ocorram, podem até nascer das cinzas, como uma Fênix. Não dependem de um sistema de arte para que sejam efetuadas, nem de colaboração do Estado, é ação-direta, puro devir. Logo, têm a liberdade de extrapolar suas potências, já que não devem referências apriori. Neste sentindo:

“As intervenções são as formas de exterioridade do Sistema de Arte-Estado e, por conseguinte, do Sistema-Salão; pois ele se define por uma condição de redução de um espaço outro. Interiorizado no seu centro de convergência onde busca incessantemente absorver as energias pulsantes do fora, se apossando das máquinas de guerra e reduzindo as forças de colisão do pensamento-obra.”

Geram assim mecanismos entre as pessoas, movimentos maquínicos, provocando coletivizações que não perpassam pelas dependências do Estado, do poder maior. E essa fluência entre as pessoas, faz com que elas se tornem mais livres na sua comunicação e nos seus processos de experiências pessoais, poéticas, políticas.

Quando se criam mecanismos que não são remotos, ou de controle, mas possíveis de gerar fluidez entre as pessoas, de acelerar os seus processos de comunicação, de reverberação de idéias, surgem circunstâncias mais livres de transmissão do pensamento e da expressão humana. Assim existe a produção de substâncias que combatem o Estado, combatem os pontos de poder, que são: censura; apropriação de idéias; a redução do espaço de informação.

Hoje vivemos em um espaço de informação digital altamente abundante, mais do que abundante: extravagante. Muita informação nos é dada, televisão, rádio, internet, no entanto a realidade dessa informação é mínima, não podemos identificar o que é de fato real e o que é uma realidade editada, uma realidade pré-definida por quem determina o meio midiático onde esta informação foi gerada. Então quando existem meios e mecanismos que interagem com processos de informação, e a circulação de informações mais livres, isto é fora de um sistema onde o capital e as fontes do poder se incluem, estão se criando dispositivos de guerra, dispositivos táticos, no sentido de que eles são causa e efeito diretamente.

- ARMAS:
Na era da informação digital, todos passam a pensar que a maior forma de poder é a aquisição dos meios eletrônicos e digitais. Na realidade o que acontece é que eles são apenas mediadores de mentalidades, da força humana, da capacidade de pensar e de transpor idéias: então, são apenas instrumentos, ferramentas, logo armas. Agora como utilizar essas armas é o que mais interessa e o que é menos compartilhado.

Quanto mais se potencializam a nossa mentalidade, por meio da distribuição de informação, educação, entendimento e clareza do uso de instrumentos digitais, como a radiofonia e a internet, estes como produtores de pensamento, mais força combativa se alcança. Mas, além de isso ser uma ferramenta usual, que pode ser catalisadora de um processo criativo humano, é também uma ferramenta do sistema bancário, é uma ferramenta governamental, é uma ferramenta na produção de armas nucleares. Todos usam esses potentes instrumentos eletrônicos e digitais, de formas mais variadas dentro da sociedade global de hoje. Então se tornam cargas altamente explosivas quando mais pessoas assumem em suas consciências, em seu sistema de vida, tais armas: a lógica punk do Faça você mesmo! (Do It Yourself!). Isto é, se expressar, comunicar idéias e sair da censura, da ditadura da informação, uma revanche, estar fora, agir, e combater o Aparelho de Estado com uma Máquina de Guerra: A mídia independente.

Assumir mecanismos midiáticos, e distribuir a informação necessária, para produção de novos meios de comunicação é altamente válido para processos artísticos e políticos. Cada vez mais têm se estimulado o retraimento da informação, o mau uso da imagem e o consumo exacerbado. Portanto, não há força de maior combate na atualidade que fazer uso da própria mídia, independentemente, livre.
Mídia independente é aquela que não está vinculada com os grandes grupos de controle de comunicação e nem tem compromissos com anunciantes, grupos políticos ou instituições governamentais. Vai contra a corrente da mídia corporativa ou “Grande Mídia” que frequentemente deturpam os fatos e apresentam uma visão de acordo com quem lhes paga mais; transmite informações editadas de acordo com seus interesses.
Mídia Independente ou Mídia Livre é a forma de tornar publico uma informação que não se presta necessariamente a propagar a ideologia dos grupos que dominam a ordem atual da sociedade, fornecendo informações no sentindo de promover o livre pensamento, através do diálogo entre a pluralidade de opiniões e informações.

Os meios mais comuns da ocorrência deste tipo de mídia são na internet, seja em sites, blogs ou redes de relacionamento. E nas rádios livres ou nas Comunitárias. Um exemplo na internet é o Centro de Mídia Independente , também conhecido como CMI-Brasil, um site que tem o intuito de “dar voz” a quem não tem, constituindo uma alternativa consistente à mídia empresarial que frequentemente distorce fatos e apresenta interpretações manipuladas de acordo com os interesses das elites econômicas, sociais e culturais. A estrutura do site na internet permite que qualquer pessoa disponibilize textos, vídeos, sons e imagens tornando-se um meio democrático e descentralizado de difusão de informações. Dando ênfase a cobertura sobre movimentos sociais, particularmente os movimentos de ação direta e sobre as políticas às quais estes se opõem.

Essas ações, que são feitas com a nossa própria vontade, estão sendo cada vez mais compartilhadas por meios midiáticos alternativos, criando um movimento combativo que não faz parte de uma lógica interna ao Sistema vigente, ao Aparelho de Estado, se quisermos utilizar o termo deleuzo-guattariano. Pois elas não delegam a outrem (Estado, Publicidade, Capital) seus interesses. Ação Direta e Mídia Independente, são portanto, nossas maiores armas.

- SANGRIA DESATADA:
“Demarcação [mapeamento] dos locais usados pela ditadura militar para a prática de tortura em Belém do Grão Pará, rede [aparelho]-: + Corredor Polonês Atelier Cultural + quem se juntar a nós. A partir do dia 31 de março de 2009 e a qualquer momento, e continua…São lugares comuns do cotidiano da cidade, alguns transcodificados em espaços de arte e de beleza, entretanto de suas paredes ainda ecoam gritos de torturados… A cada nova informação, demarcamos o lugar com uma mancha vermelha, mancha de alerta e de memória…”

Dia 31 de março de 2009 comemorou-se os 45 anos do golpe militar que deu inicio a ditadura no Brasil. Em 17 de Fevereiro de 2009, foi publicado na folha de São Paulo um editorial se referindo ao Hugo Chavéz, presidente da Venezuela, como maior ditador da América do Sul, e que a ditadura no Brasil na verdade teria sido uma “Ditabranda”, em relação ao horror que os venezuelanos estavam passando.

Esta publicação revela o caráter corruptível e editável das informações nas Grandes mídias, de acordo com seus interesses políticos. Um jornal, que é um dos mais lidos do País, tem uma potência de formação de opinião. Dentro dessas mídias abertas e consumidas pela maioria da população brasileira, as informações passam por mecanismos de construções de verdades, e a noticia só é dada de acordo com “jogadas” políticas previamente estabelecidas, seja da oposição, seja do governo, seja do setor privado que paga por publicidade. O capital é o limite e a realidade da informação é editável.

Sangria Desatada foi uma ação feita para questionar esses mecanismos, e fazer uma crítica direta a este editorial. Esta intervenção fez parte de um movimento artístico chamado 48h Ditadura Nunca Mais que agenciou várias manifestações em território nacional em repúdio a publicação da Folha de São Paulo e à comemoração dos 35 anos do golpe.

Na escala do real, isto é, nas ruas da cidade, a Rede[Aparelho]-: fez um mapeamento da tortura em Belém. Rememorando e demarcando os locais onde eram torturados os presos políticos na época da ditadura militar; com tinta sangue de urucum, vegetal tipicamente amazônico, uma pintura foi feita em frente aos espaços onde o derramamento de sangue humano foi fato. Uma Sangria Desatada.

Muitas fotografias foram feitas e publicadas em vários sites de mídia independente, fazendo circular a memória histórica de um povo maltratado e que a grande mídia quer fazer esquecer. Essa intervenção é um bom exemplo de ação direta que escapa aos domínios do poder maior, atua como uma Máquina de Guerra cada vez que essas fotografias são acessadas mantendo a memória desse período “duro” na história do Brasil.

CONCLUSÃO:
Falar de filosofia e arte ao mesmo tempo, acima de qualquer coisa é uma tarefa prazerosa. Os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari nos mostram que o diálogo entre as duas existe e se torna interessante, a partir do momento em que uma atravessa a outra, em seus acontecimentos.

Neste artigo foi possível conectar vida e teoria, através de uma experiência poética nas ruas desta cidade e, justamente por isso, políticas. Uma arte que acontece fora do Sistema que normatiza a arte, de maneira geral, produz novas informações a cada segundo, e distribuí-las, transforma-se em poesia e em dispositivos de guerra ativados em redes: Máquina de Guerra rizómatica produzindo blocos de sensações.

Procuramos ocupar e atravessar fronteiras que separam arte e filosofia da vida. Uma busca que só pode ser pautada na ação, pois Pensar é Agir, o que é fundamental para uma trajetória crítica na vida de qualquer ser humano. Abrir perspectivas para uma realidade crítica tem por trás um intuito político: desmascarar as “amarras” do Sistema Capitalista, que os filósofos já referidos consideram esquizofrênico, pois a Sociedade da Informação, repleta de novas mídias é cheia de recursos para expressarmos o nosso pensamento, de maneira veloz e eficiente, e que sim! podemos utilizá-los de maneira combativa. Esse escrito não deixa de ir atrás de uma realidade mais livre.

Referências:
DELEUZE, Gilles.Conversações in: Entrevista sobre Mille Pateux. Rio de janeiro: ed. 34. 2004.
__________________________________. Mil platôs: Capitalismo e Esquizofrenia.v 5. Rio de janeiro: ed. 34. 2004.
__________________________________. O que é a filosofia? Rio de janeiro: ed. 34. 2005.

NEGRI,Toni. O Devir Revolucionário e as criações políticas: Uma entrevista com Gilles Deleuze.1990.Disponível em: http://www.4shared.com/file/143765077/282967ª/GD_Negri_devir_revolucionario.html . Acesso em 15 de outubro de 2009.
PINHEIRO, Luizan. Intervenção Urbana: Da Máquina de Guerra, os Disparos. 18º Congresso Nacional da Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas – ANPAP. Salvador/ BA, 2009. Anais/ CD-ROM.
VASCONCELLOS, Jorge. Porcelana e cristal: arte e ontologia em Gilles Deleuze. In: Livro de atas do X encontro nacional de filosofia. São Paulo, 2002.

Sites:
www.comumlab.aparelho.org
www.midiaindependente.org
www.wikipedia.com
http://www.4shared.com/file/143765077/282967ª/GD_Negri_devir_revolucionario.html